sábado, 12 de janeiro de 2019

O mistério da múmia da Gallotti

O mistério teve início na manhã de 19 de setembro de 1949. Lá pelas sete da manhã, cinco amigos - Antônio Marcos de Oliveira, Laércio Martins, Patrick White, Ricardo Menescal e Tadeusz Hollup - se encontram na Praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, para escalar o Pão de Açúcar, não era uma escalada como outra qualquer. Em vez de simplesmente subir o paredão de 396 metros de altura por uma das três vias de acesso já desbravadas, os montanhistas, membros do Clube Excursionista Carioca (CEC), decidiram explorar uma quarta trilha, ainda mais perigosa e arrojada que as anteriores.
Os conquistadores levaram quase cinco anos para concluir a rota que ficou conhecida como a chaminé Gallotti, em homenagem ao senador Francisco Benjamin Gallotti (1895-1961), explica Rodrigo Milone, presidente do CEC.


Durante anos, foi considerada a mais difícil escalada do montanhismo brasileiro.
Ainda na clareira que dá acesso ao paredão, Hollup, então com 19 anos, começou a desconfiar de que algo estava errado quando viu um sapato de mulher, deteriorado pelo tempo, em plena Mata Atlântica.
"Será que, daqui a pouco, vamos encontrar a dona do sapato?", perguntou ele, em tom de brincadeira.
"Mesmo assim, não dei muita importância. Joguei o sapato fora e continuamos a subir", explicou em sua última entrevista, dada ao programa Esporte Espetacular, da TV Globo, em 22 de outubro de 2017.
Tadeusz Hollup, o último dos desbravadores da chaminé Gallotti, morreu no dia 27 de agosto de 2018, aos 88 anos.

Alguns metros acima, Oliveira, o caçula do grupo, com 18 anos, já desbravava a encosta do morro. Dali a pouco, por volta das 11h30, se deparou com um cadáver, preso pela garganta, numa fenda estreita da rocha, apelidada de "chaminé" pelos alpinistas.

Ao contrário do que se poderia imaginar, o defunto não estava em estado de putrefação e, sim, "mumificado".


"Quando o vento bateu mais forte, o cabelo dele, que era enorme, pousou no meu ombro. Foi aí que vi que era uma pessoa. Fiquei apavorado!", relatou Oliveira no documentário Cinquentona Gallotti (2004), escrito e dirigido por Priscilla Botto e Paulo de Barros.
Na mesma hora, berrou para os amigos: "Ó, tem uma pessoa morta aqui!".
Hollup e Menescal caíram na gargalhada. "Que história é essa?", quis saber Hollup, aos risos.
"Achou a dona do sapato?", fez graça Menescal. Os dois levaram na brincadeira. Mas Oliveira, não. Quando chegaram ao local, tomaram um susto daqueles. A coisa era séria mesmo, diante da "descoberta" macabra, os amigos resolveram suspender a escalada e avisar a polícia. A tão sonhada conquista da chaminé Gallotti - proeza alcançada só cinco anos depois, em 1954 - teria que ficar para outro dia.


Na manhã seguinte, os cinco voltaram à Urca, acompanhados de policiais, repórteres e legistas. Munidos de grampos, martelos e brocas, desceram o corpo da "múmia" até a clareira, onde estavam os bombeiros. Naquela época, os escaladores usavam cordas de sisal e coturnos com tachas. Tudo muito rudimentar para os padrões atuais.
A "descoberta" da múmia virou notícia em todos os jornais. Para espanto geral, o laudo, assinado pelo médico-legista José Seve Neto, desfez o mal-entendido: o cadáver não era de mulher, como imaginado inicialmente por causa da vasta cabeleira, mas de um homem.
Segundo a nota publicada na edição do dia 20 de setembro de 1949, do jornal O Globo, os restos mortais pertenciam a "indivíduo de cor branca, com 35 anos presumíveis, estatura franzina e com 1,60 m de altura".
Ainda de acordo com o laudo, o defunto, que vestia um suéter e uma camisa sem mangas de algodão, não apresentava sinais de fratura, nem vestígio de bala ou facada. E o pior: não trazia documentos.


Os legistas concluíram que o cadáver estava lá havia uns seis meses, pelo menos, foi mumificado devido à maresia.
O químico Emiliano Chemello, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), explica que a maresia pode ter ajudado, sim, na mumificação do cadáver. Isso porque o sal presente nela absorve a água, retardando processo de decomposição do corpo.
Os antigos egípcios usavam um minério chamado natrão, rico em carbonato de sódio. Eles empacotavam o natrão, em pequenas bolsas, dentro do corpo da múmia, além de jogarem um punhado do minério sobre o cadáver. Quarenta dias depois, o defunto estava encolhido e duro.

Apesar de toda a repercussão nos jornais da época, nenhum amigo, parente ou familiar apareceu no Instituto Médico Legal (IML) para reconhecer o corpo. De quem era o cadáver encontrado na chaminé Gallotti? Ninguém sabe. A identidade da "múmia", sete décadas depois, continua ignorada.


Mas essa é apenas uma das muitas perguntas sem resposta. Outra: como foi parar lá? Há várias hipóteses: de suicídio a assassinato. Para o extinto jornal A Noite, um dos muitos a cobrir o caso, os restos mortais pertenciam a um mendigo que teria se jogado morro abaixo.
Rodolfo Campos, roteirista e diretor do curta A Múmia da Gallotti (2009), tem outra versão: "Por ser um homem vestido de mulher e ter os cabelos compridos, suspeito que fosse um travesti que, talvez, estivesse fugindo de alguém ou tentando se esconder na mata. Mas é impossível afirmar com certeza".
Será que, no fim das contas, o mistério da "múmia" carioca esconde um caso de transfobia?
Há quem sustente, ainda, a tese de que o corpo seria de algum morador de uma favela próxima, localizada entre o Morro da Urca e o Pão de Açúcar.
O historiador Milton Teixeira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), rebate essa teoria. Ele explica que, naquele local, há uma caverna e que, nos anos 1940, morou ali um português que vivia da pesca e da venda de artesanato. Nos anos 1960, o tal eremita ganhou a companhia de um casal de retirantes cearenses.
"Em 1968, os militares ordenaram a saída dos três e hoje, na caverna, vivem apenas morcegos", arremata o historiador.
Outra pergunta intrigante: que fim levou a "múmia" do Pão de Açúcar? Tudo indica que, a exemplo das peças egípcias que faziam parte do acervo de 20 milhões de itens do Museu Nacional, teve destino trágico. A diferença é que, em vez de ter sido consumida pelas chamas de um incêndio, teria sido sepultada como indigente por falta de documentação e reconhecimento familiar.